sábado, 20 de junho de 2009

Eu continuo fiscal do Sarney

-pequeno exercício de memória histórica atualizada-


Os da minha idade vão lembrar-se do botton aí ao lado. Pra quem não conhece, vou contar parte dessa história. Ela me veio à mente ao ler a notícia de que um deputado renunciou ao seu mandato após denúncias de que funcionários do Parlamento haviam promovido gastos indevidos com verbas públicas. Ele pessoalmente não estava envolvido, os funcionários sequer eram do seu gabinete, mas se declarou envergonhado com a situação e optou pela renúncia.

Pois é, o episódio acima aconteceu... na Inglaterra.

Como não existe pecado no lado de baixo do equador... aqui, pelas bandas do Brasil, o senador José Sarney, atual presidente do Senado, ex-presidente da República, ex-governador do Maranhão, presidente do partido que apoiava o governo militar à época da ditadura, membro da Academia Brasileira de Letras, patriarca de uma dinastia de poder e no poder, há 50 anos presente na história política do Brasil, vai à tribuna defender-se das acusações de, entre outras coisas, ter parentes e apaniguados na lista de beneficiados por “atos secretos”, medidas aprovadas e não publicadas, nos bastidores do Congresso Nacional. As denúncias têm nome, endereço e telefone.

Sarney, indignado, faz veemente discurso. Esclarece, explica, desmente tudo? Nada disso. A frase lapidar da sua fala é a seguinte: “O problema não é meu. O problema é do Senado!”.

Como assim? Para ele, o fato de ocupar pela terceira vez a presidência do mesmo Senado é apenas um detalhe? É problema dos outros?

Sabem de uma coisa, ele tem razão. Sarney está lá pelo voto popular. Ele e tantos outros sarneys, que há muito tempo desviam a riqueza do país para si e para os seus. E como Brasília fica muito longe do Brasil, as medidas para apurar denúncias que por lá abundam demoram a ser implementadas. Esses sarneys estão pouco se lixando para a opinião pública. De vez em quando se permitem uma desculpa, uma justificativa, um gesto de quase humildade. Mas, dessa vez, a investigação tarda pois um dos possíveis responsáveis pela apuração, outro senador, está em licença médica. Fez, recentemente, uma cirurgia para redução de estômago.

Pena não haver uma cirurgia capaz de reduzir também a fome desse pessoal por dinheiro e poder. Ou, quem sabe, para aumentar o nosso estômago, facilitando a digestão dos sapos que somos obrigados, diariamente, a engolir.

Mas voltemos ao Sarney, que, na verdade, tem muitos nomes. E muito dinheiro. Políticos dessa espécie estão no poder há muito tempo. Quinhentos e nove anos, para ser mais preciso. O Sarney de cinco séculos chegou na caravela do Cabral. Aqui desembarcado, promoveu logo um primeiro ato político: com uma missa, tomou posse da ilha de Vera Cruz, em nome de Deus e do rei de Portugal. Fez o sermão. A plateia indígena, perplexa, via, ouvia e nada entendia. Como acontece até hoje.

Após o rito, o saque. A Ilha de Vera Cruz foi rebatizada. O Sarney daquela época dividiu a terra que virou um Brasil fatiado em capitanias hereditárias. Ah, o peso dessa palavra na nossa história; hereditária...

Lá estava Sarney que, servil, serviu a Portugal. Comeu das fartas sobras do poder, dos restos da mesa da corte, sonhando, um dia, sentar-se à cabeceira. Viu a colônia morrer e um império nascer, às margens plácidas do Ipiranga.

E veio a República, que já nasceu fardada, gostou do traje, o que fez brotar, de vez em quando, aqui e ali, um golpezinho, uma revolução, uma ditadura...

Sarney bateu continência a todos e todas. Fez-se presidente de uma tal ARENA, nome significativo para um país que se transformava em um novo coliseu onde a liberdade era jogada aos leões.

Mas, de tanto usada, a faca, um dia, já não cortava. O golpe cansou de se reinventar. Caiu de podre. E quem estava lá para aproveitar a ocasião? Nosso Sarney atual. Chegava, enfim, sua vez de sentar-se à cabeceira da mesa do que ele chamou de Nova República.

O Poder, agora rebatizado de Mercado, mais uma vez deu as cartas. Sarney, como sempre, dava suas cartadas. Inventou um ministro, que inventou um plano mirabolante, congelou preços, confiscou bois no pasto e terminou convocando os fiscais do Sarney, nós, o povo, que nos esquecemos de fiscalizar a velha raposa.

Nada funcionou, a não ser as concessões de Rádio e TV que garantiram ao tarimbado político mais um ano de poder.

Até que, no último mês do seu desgoverno, Sarney saiu pela porta dos fundos do palácio. Deixava as prateleiras vazias e uma conta para o Brasil pagar: 84% de inflação ao mês!!!

Mas qual o que: outro Sarney o substituiu. Atendia pelo nome de Collor, que também inventou ministros, planos e confiscos. Nova estampa, velhos métodos. O novo Sarney, (que de novo só tinha o nome), mudava alguma coisa, para não mudar coisa nenhuma...

E assim caminha a Humanidade...

Será? É nossa herança e destino essa desesperança?

Socorro-me do apóstolo Paulo: “mesmo contra toda a esperança, esperei...”

E vou lhes dar as razões da minha esperança. Por incrível que pareça, acredito que estamos melhorando como civilização, como espécie. O bicho homem se faz, cada vez mais, homo sapiens.

Há pouco mais de 100 anos a cor da pele definia se alguém nascia livre ou escravo. A busca, então, era de abolicionistas, por liberdade. Hoje somos ecologistas, lutando por preservação e sustentabilidade.

O problema é que falamos tanto, jogamos holofote em tantos sarneys, que nos esquecemos que, na História, também houve um Gandhi, um Luther King, um Chico Mendes, gente que lutou por liberdade e direitos, que fez valer princípios como a desobediência civil e a não-violência ativa.

Ficamos tão marcados por esses parasitas insaciáveis que não saem das manchetes que não percebemos que em qualquer criança de seis anos, hoje, há um ser político em construção, capaz de praticar e exigir a prática de uma nova ética.

Há um futuro acontecendo. Estão cada mais ridículos os vândalos, os desonestos e outros idiotas. Os sarneys têm cada vez menos espaço para suas manobras. Ainda se movem, e como se movem, mas seus atos são cada vez menos secretos.

Desculpe essa minha mania de professor de ver, em tudo, a possibilidade de aprender e ensinar. A minha vergonha diante do discurso do Sarney me fez lembrar a vergonha do deputado inglês. Ele renunciou. Eu não. Entro agora na campanha eleitoral.

Renuncio à idiotice do “levar vantagem em tudo”, do “não tô nem aí”, refrão que já foi sucesso nas paradas musicais. Música por música prefiro parafrasear Jorge Ben Jor que cantava: “Se o Sarney soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem...”

Chega de sarneys. O tempo é outro. E a você que desanimou ou nem se animou, lembro uma palavra de Frei Betto:

“Os da minha geração imaginaram, por um momento, que a conquista dos sonhos de liberdade e dignidade coincidiriam com o nosso tempo histórico, o tempo da nossa vida. Hoje, perdi a esperança de fazer parte da colheita, mas não abro mão de morrer semente...”

Para quem é educador, semeador, o tempo da esperança se chama sempre.

Eduardo Machado

19/06/2009