terça-feira, 28 de abril de 2009

Amigos solidários...

Você já percebeu que entre todos os seres vivos, entre todas as espécies, predominam três formas de relação – a de concorrência, a de antagonismo e a de complementaridade? E que esta última, mais conhecida como "solidariedade", tem sido a base de todas as utopias humanas? E que por mais que lute ou estude racionalmente o assunto a humanidade permanece carente desta "qualidade de vida"? E que tal carência nos impele à destruição tanto da vida humana quanto de outras formas de vida?

Desde que tenhamos a solidariedade como um objetivo pessoal e coletivo, por ver nesta forma de relacionamento um caminho de transformação cultural indispensável das sociedades fragmentadas, agressivas e massificadas -- provavelmente perguntaremos "como desenvolver a solidariedade?". Certamente, cada um de nós, de acordo com sua experiência e sabedoria, terá algo a dizer a respeito. Por isso, fazer esta pergunta aos nossos colegas e amigos pode ser um bom meio de começar a encontrar a melhor resposta.A tradição individualista e socialmente irresponsável é muito forte e, por isso, provavelmente teremos em nosso próprio condicionamento psíquico o maior obstáculo.

Esta é uma das razões do esvaziamento ético e do declínio humano na civilização urbano-industrial, principalmente nas grandes cidades. E tem como resposta mais lúcida a formação de grupos que desenvolvem formas de estimular o potencial humano utilizando terapias, arte, ajuda-mútua etc.No processo de busca da solidariedade, há uma percepção das limitações individuais no sentido de conhecer o outro. Esbarramos no limitado conhecimento de imagens parciais sobre o outro e, geralmente, ficamos frustrados com a não-correspondência das imagens com a realidade, que se revela inapreensível. O outro permanece um mistério. De um lado, portanto, temos o nosso condicionamento e, de outro, temos mistério, o desconhecido.Para estabelecer pontes artificiais sobre esse abismo, repetimos frases, clichês, estereótipos, crenças de todos conhecidas, e fazemos da relação social algo inautêntico. Porém, se tivermos clareza sobre o grau de condicionamento individualista determinado por nosso passado, teremos dado um importante passo em direção da solidariedade. E se, além disso, percebemos a relação social como um momento privilegiado de autoconhecimento e de aprendizado em aberto, sem fim -- teremos dado outro passo fundamental.

A autopercepção, neste caso, inclui o outro, ou seja, o "eu" é ampliado à condição de "nós". Suspendemos continuamente as imagens que temos do outro e abrimos nossa autopercepção a ponto de incluir a liberdade do outro. Observamo-nos, na relação solidária, evitando autocensura e autojustificação, permanecendo atentos à possibilidade de ver nossa liberdade acompanhar a liberdade do outro, momento a momento, sem expectativa de um resultado concreto, de um fim. Para isso, é preciso contar não só com a desmistificação dos estereótipos, dos inúmeros artifícios sociais, mas também com o propósito claro, explícito, de desenvolver a solidariedade.Com este propósito sendo consensual, os conflitos são relativizados, diluídos, e o silêncio ganha espaço na relação.

Observe-se que, entre amigos, o silêncio não é fator de constrangimento, como acontece nas relações entre desconhecidos ou recém conhecidos. A solidariedade é um caminho para a amizade (amor ético), a mais bela forma de relação social, a que mais gera valores e amplia a liberdade humana. Na solidariedade, redescobrimos o sentido original da palavra respeito, que nada tem a ver com temor e obediência, mas sim com atenção integral a alguém. Na solidariedade, percebemos a beleza da partilha, da ação em conjunto. E a percepção desta beleza, em si, suscita valores essenciais, como o amor, a paz, a liberdade, a meditação, a evolução e a harmonia.A solidariedade, entretanto, precisa distinguir-se da bondade, que pode ser unilateral. Quando somos solidários, de certa forma vamos além da bondade, porque participamos de um movimento social nascente, que pode incluir duas ou mais pessoas. A solidariedade também difere do envolvimento romântico, porque, ao contrário deste, preserva-se na solidariedade a individualidade do outro e a nossa própria liberdade e discernimento.





O ser solidário não é vítima do apego ou do ciúme patológico, simplesmente porque se recusa a congelar a imagem que tem do outro e de si mesmo, podendo, por isso, estender a solidariedade às transformações do outro, desde que haja reciprocidade.Não havendo esta última, pelo menos num grau mínimo, não há como desenvolver-se a solidariedade. Como se vê, trata-se de uma arte complexa, que exige extraordinária sensibilidade e discernimento.

Na solidariedade, a confusão entre qualidade e quantidade é fatal, destrutiva. Popularidade não indica solidariedade. Não será pela extensão superficial do rótulo de "amizade" às relações sociais com estranhos colegas que a solidariedade fará parte de nossa vida. Ser solidário é sentir-se solidário, além de dizer-se solidário. Descobrir, em si mesmo, um sentimento de solidariedade, é motivo de comemoração, de confraternização, porque é algo raro e tão transformador que geralmente é reprimido nas instituições hierárquicas, nos grupos formais.A solidariedade é uma arte, a arte da conquista de uma relação social autêntica, que permite o desenvolvimento do potencial humano e dele depende. É uma abertura de horizontes no caminho, não é o caminho todo, não é um produto, mas um processo.

O mistério deste processo, entretanto, apresenta-se inteligível para os envolvidos, embora não seja racionalizável. Exige uma inteligência diferente, interpessoal, emocional, aberta à intuição, ao sentimento e à percepção. A solidariedade, assim concebida, é pré-condição ao labor interdisciplinar.Cada um de nós tem seu ritmo próprio no desenvolvimento desta arte, porque nossos condicionamentos diferem em graus de repressão das emoções superiores, da abertura perceptiva e de educação do raciocínio lógico.

Nem sempre somos incapazes de solidariedade por falta de percepção aguda, ou de sentimentos nobres ou de discernimento lógico.Geralmente ocorre uma combinação complexa destas carências, de modo que precisamos todos compreender a necessidade não só de aprender a arte de ser solidário, mas também a necessidade social de estimular o aprendizado de outrem. Ou seja, a solidariedade, sendo um processo de libertação social, de autoconhecimento coletivo, não é qualidade que se tem ou não se tem, mas que se aprende e se ensina partindo das mais variadas condições sociais, dos mais variados ambientes ou ecossistemas